sexta-feira, 30 de abril de 2010

Pedagogia da Autonomia ( Paulo Freire)


            
 
 
 
           Muitas pessoas não entendem o porquê que os profissionais da Pedagogia admiram tanto nosso querido Paulo Freire, mas gostaria aqui de fazer uma simples homenagem a esse pedagogo transcrevendo as primeiras palavras dele nesse livro tão fabuloso que é o "Pedagogia da Autonomia". Leiam e reflitam sobre sua prática educativa, afinal educação não ocorre apenas entre as quatro paredes de uma sala de aula.

 Prossigamos com a transcrição:


Primeiras Palavras

A questão da formação docente ao lado da reflexão sobre a prática educativo-progressiva em favor da autonomia do ser dos educandos é a temática central em torno de que gira este texto. Temática a que se incorpora a análise de saberes fundamentais àquela prática e aos quais espero que o leitor crítico acrescente alguns que me tenham escapado ou cuja importância não tenha percebido.
Devo esclarecer aos prováveis leitores e leitoras o seguinte: na medida mesma em que esta vem sendo uma temática sempre presente às minhas preocupações de educador, alguns dos aspectos aqui discutidos não têm sido estranhos a análises feitas em livros meus anteriores. Não creio, porém, que a retomada de problemas entre um livro e outro e no corpo de um mesmo livro enfade o leitor. Sobretudo quando a retomada do tema não é pura repetição do que já foi dito. No meu caso pessoal retomar um assunto ou tema tem que ver principalmente com a marca oral de minha escrita. Mas tem que ver também com a relevância que o tema de que falo e a que volto tem no conjunto de objetos a que direciono minha curiosidade.
Tem que ver também com a relação que certa matéria tem com outras que vêm emergindo no desenvolvimento de minha reflexão. É neste sentido, por exemplo, que me aproximo de novo da questão da inconclusão do ser humano, de sua inserção num permanente movimento de procura, que rediscuto a curiosidade ingênua e a crítica, virando epistemológica. É nesse sentido que reinsisto em que formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas, e por que não dizer também da quase obstinação com que falo de meu interesse por tudo o que diz respeito aos homens e às mulheres, assunto de que saio e a que volto com o gosto de quem a ele se dá pela primeira vez. Daí a crítica permanentemente presente em mim à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia.
Daí o tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo. Daí o meu nenhum interesse de, não importa que ordem, assumir um ar de observador imparcial, objetivo, seguro, dos fatos e dos acontecimentos. Em tempo algum pude ser um observador "acinzentadamente" imparcial, o que, porém, jamais me afastou de uma posição rigorosamente ética. Quem observa o faz de um certo ponto de vista, o que não situa o observador em erro. O erro na verdade não é ter um certo ponto de vista, mas absolutizá-lo e desconhecer que, mesmo do acerto de seu ponto de vista é possível que a razão ética nem sempre esteja com ele.
O meu ponto de vista é o dos "condenados da Terra", o dos excluídos. Não aceito, porem, em nome de nada, ações terroristas, pois que delas resultam a morte de inocentes e a insegurança de seres humanos. O terrorismo nega o que venho chamando de ética universal do ser humano. Estou com os árabes na luta por seus direitos mas não pude aceitar a malvadez do ato terrorista nas Olimpíadas de Munique.
Gostaria, por outro lado, de sublinhar a nós mesmos, professores e professoras, a nossa responsabilidade ética no exercício de nossa tarefa docente. Sublinhar esta responsabilidade igualmente àquelas e àqueles que se acham em formação para exerce-la. Este pequeno livro se encontra cortado ou permeado em sua totalidade pelo sentido da necessária eticidade que conota expressivamente a natureza da pratica educativa, enquanto prática formadora. Educadores e educandos não podemos, na verdade, escapar à rigorosidade ética. Mas, é preciso deixar claro que a ética de que falo não é a ética menor, restrita, do mercado, que se curva obediente aos interesses do lucro. Em nível internacional começa a aparecer uma tendência em acertar os reflexos cruciais da "nova ordem mundial", como naturais e inevitáveis. Num encontro internacional de ONGs, um dos expositores afirmou estar ouvindo com certa freqüência em países do Primeiro Mundo a idéia de que crianças do Terceiro Mundo, acometidas por doenças como diarréia aguda, não deveriam ser salvas, pois tal recurso só prolongaria uma vida já destinada à miséria e ao sofrimento. Não falo, obviamente, desta ética. Falo, pelo contrário, da ética universal do ser humano. Da ética que condena o cinismo do discurso citado acima, que condena a exploração da força de trabalho do ser humano, que condena acusar por ouvir dizer, afirmar que alguém falou A sabendo que foi dito B, falsear a verdade, iludir o incauto, golpear o fraco e indefeso, soterrar o sonho e a utopia, prometer sabendo que não cumprirá a promessa, testemunhar mentirosamente, falar mal dos outros pelo gosto de falar mal. A ética de que falo é a que se sabe traída e negada nos comportamentos grosseiramente imorais como na perversão hipócrita da pureza em puritanismo. A ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe. É por esta ética inseparável da prática, jovens ou com adultos, que devemos lutar. E a melhor maneira de por ela lutar é vive-la em nossa prática, é testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas relações com eles. Na maneira como lidamos com os conteúdos que ensinamos, no modo como citamos autores de cuja obra discordamos ou com cuja obra concordamos. Não podemos basear nossa crítica a um autor na leitura feita por cima de uma ou outra de suas obras. Pior ainda, tendo lido apenas a crítica de quem só leu a contracapa de um de seus livros.
Posso não aceitar a concepção pedagógica desde ou daquela autora e devo inclusive expor aos alunos as razoes por que me oponho a ela mas, o que não posso, na minha crítica, é mentir. É dizer inverdades em torno deles. O preparo científico do professor ou da professora deve coincidir com sua retidão ética. É uma lástima qualquer descompasso entre aquela e esta. Formação científica, correção ética, respeito aos outros, coerência, não permitir que o nosso mal-estar pessoal ou a nossa antipatia com relação ao outro nos façam acusá-lo do que não fez são obrigações a cujo cumprimento devemos humilde mas perseverantemente nos dedicar.
É não só interessante mas profundamente importante que os estudantes percebam as diferenças de compreensão dos fatos, as posições às vezes antagônicas entre professores na apreciação dos problemas e no equacionamento de soluções. Mas é fundamental que percebam o respeito e a lealdade com que um professor analisa e critica as posturas dos outros.
De quando em vez, ao longo deste texto, volto a este tema. É que me acho absolutamente convencido da natureza ética da prática educativa, enquanto prática especificamente humana. É que, por outro lado, nos achamos, ao nível do mundo e não apenas do Brasil, de tal maneira submetidos ao comando da malvadez da ética do mercado, que me parece ser pouco tudo o que façamos na defesa e na prática da ética universal do ser humano. Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos. Neste sentido, a transgressão dos princípios éticos é uma possibilidade mas não é uma virtude. Não podemos aceita-la. Não é possível ao sujeito ético viver sem estar permanentemente exposto á transgressão da ética. Uma de nossas brigas na História, por isso mesmo, é exatamente esta: fazer tudo o que possamos e favor da eticidade, sem cair no moralismo hipócrita, ao gosto reconhecidamente farisaico. Mas, faz parte igualmente desta luta pela eticidade recusar, com segurança, as críticas que vêem na defesa da ética, precisamente a expressão daquele moralismo criticado. Em mim, a defesa da ética jamais significou sua distorção ou negação.
Quando, porém, falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana. Ao faze-lo estou advertindo das possíveis críticas que, infiéis a meu pensamento, me apontarão como ingênuo e idealista. Na verdade, falo da ética universal do ser humano da mesma forma como falo de sua vocação ontológica para o ser mais, como falo de sua natureza constituindo-se social e historicamente não como um "a priori" da Historia. A natureza que a ontologia cuida se gesta socialmente na Historia. É uma natureza em processo de estar sendo com algumas conotações fundamentais sem as quais não teria sido possível reconhecer a própria presença humana no mundo como algo original e singular. Quer dizer, mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um "não-eu" se reconhece como "si própria". Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude.
Na verdade, seria incompreensível se a consciência de minha presença no mundo não significasse já a impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença. Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo. Se sou puro produto da determinação genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que faço no mover-me no mundo e se careço de responsabilidade não posso falar em ética. Isto não significa negar os condicionamentos genéticos, culturais, sociais a que estamos submetidos. Significa reconhecer que somos seres condicionados mas não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático e não inexorável.
Devo enfatizar também que este é um livro esperançoso, um livro otimista, mas não ingenuamente construído de otimismo falso e de esperança vã. As pessoas, porém, inclusive de esquerda, para quem o futuro perdeu sua problematicidade - o futuro é um dado dado - dirão que ele é mais um devaneio de sonhador inveterado.
Não tenho raiva de quem assim pensa. Lamento apenas sua posição: a de quem perdeu seu endereço na História.
A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de história e cultural, passa a ser ou a virar "quase natural". Frases como "a realidade é assim mesmo, que podemos fazer?" ou "o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século" expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora. Do ponto de vista de tal ideologia, só há uma saída para a prática educativa: adaptar o educando a esta realidade que não pode ser mudada. O de que se precisa, por isso mesmo, é o treino técnico indispensável à adaptação do educando, à sua sobrevivência. O livro com que volto aos leitores é um decisivo não a esta ideologia que nos nega e amesquinha como gente.
De uma coisa, qualquer texto necessita: que o leitor ou leitora a ele se entregue de forma crítica, crescentemente curiosa. É isto o que este texto espera de você, que acabou de ler estas "Primeiras Palavras".

Paulo Freire
São Paulo - Setembro de 1996